“Filme Livre!: curando, mostrando e pensando filmes livres” é um livro comemorativo dos dez anos da Mostra do Filme Livre, lançado em março de 2011 no Centro Cultural Banco do Brasil (RJ), durante a Mostra do Filme Livre. O livro é uma coletânea de textos publicados nos catálogos anteriores da Mostra, contendo reflexões e debates sobre os rumos do cinema independente ao longo desta década, além de textos sobre os filmes destacados na Mostra e sobre os “autores livres”, que tiveram retrospectivas de suas obras no evento. Através dessa coletânea, é possível ver, ao longo dos dez anos de Mostra, um caminho de um cinema independente brasileiro na primeira década do novo século. Organização: Marcelo Ikeda.

 


 
 

Segue abaixo o texto de introdução do livro, intitulado “Plantando Sonhos”

Em 2011, a Mostra do Filme Livre completa dez anos, justamente num momento em que a produção audiovisual brasileira independente alcança grande visibilidade, coroada pela premiação no Festival de Brasília de O Céu Sobre os Ombros, de Sérgio Borges. É como se essa premiação representasse simbolicamente a “ascensão ao trono” de uma nova geração, que ganha o principal prêmio do mais tradicional festival de cinema do país. No entanto, essa geração, essa “novíssima cena”, não é tão “novíssima” assim: ela se confunde com todo um caminho muito mais remoto, mas que podemos considerar que se deu numa nova configuração ao longo dos últimos dez anos. Nesse sentido, é importante observar como esse novo caminho pode ser visto numa complementaridade entre dois pontos: uma nova forma de produção e novas possibilidades de difusão.

De um lado, essa nova geração encontrou novas possibilidades de expressão com as tecnologias digitais. Cada vez mais, tornava-se possível realizar um bom filme com meios praticamente amadores. No entanto, esses videos produzidos não conseguiam ser exibidos nos festivais de cinema do Brasil, que, no início deste século, ainda privilegiavam obras em 35mm. Estas, para serem produzidas, eram muito custosas, dependendo, portanto, dos editais publicos para sua realização. Isso configurava um circuito de produção e circulação: obras em 35mm que circulavam nos festivais, e que, para poderem existir, precisavam ganhar editais, ou seja, obras pré-formatadas. Não é que essa configuração também não tenha gerado grandes curtas e apontado para grandes realizadores, mas tornava mais restritas as possibilidades de expressão audiovisual. Do mesmo modo, para chegar ao seu primeiro longa-metragem, era preciso que o realizador tivesse formado um “currículo”, ganhando diversos prêmios com seu curta 35mm nos principais festivais de cinema do país, conquistado a simpatia de uma empresa produtora, para que inscrevesse seu projeto de longa nos poucos editais federais que abriam possibilidades para estreantes, notadamente o da Petrobras e o de Baixo Orçamento do MinC, especialmente este último. No entanto, a cada edição do “BO” eram contemplados apenas quatro ou cinco projetos, e a demanda era muito grande, havendo ainda uma necessidade de divisão por regiões e a eterna política de atender aos gostos singulares dos jurados de cada comissão. Assim, grandes realizadores, mesmo com inúmeras premiações nos festivais de cinema no país, demoraram dez anos (ou mais) para realizarem seu primeiro longa. Entre eles, podemos citar Gustavo Spolidoro, Paulo Halm, Phillipe Barcinski, Kleber Mendonça Filho, ou outros como Eduardo Nunes e Camilo Cavalcanti, cujos primeiros longas contemplados pelo BO ainda não estão concluídos.

Ou seja, uma transformação da tecnologia (ou da técnica) despertava novas possibilidades, mostrando um novo modo de produção, abandonando a dependência de um certo modelo de financiamento, e apontando a necessidade de uma nova forma de circulação dessas obras. O circuito fechado começava a se abrir, a se ampliar para novas perspectivas. Uma série de videos – baratos, radicais, marginais – começava a ser produzido nos cinco cantos do país, mas não conseguia circular. Não é à toa que nesse momento houve uma profusão da criação de cineclubes. Nesse período, no Rio de Janeiro, um dos mais importantes cineclubes pioneiros foi a mostra “o que neguinho tá fazendo”, realizado na Fundição Progresso, na Lapa, que começou em 1999. O cineclube era essencialmente um ponto de encontro dessa nova geração, que trocava ideias, fumaças, afetos, exibia seus filmes e pensamentos, e conhecia outras pessoas para juntos realizarem novos projetos. Ou seja, os cineclubes geravam encontros, que geraram trocas, racionais e sentimentais, que geraram mais filmes, e mais encontros e mais trocas, de modo que esse circuito foi ganhando uma força inesperada, que crescia de forma orgânica. Surgia uma curiosidade em tocar os limites de algo que não se sabia muito bem o que era, mas surgia essencialmente de uma insatisfação diante de um embolorado rumo das coisas e de uma necessidade de colocar para fora uma nova visão de mundo: por isso, eram filmes confusos, estranhos, de descoberta, que misturavam bitolas (do Super-8 ao VHS) e referências (do pop ao punk, da vida das ruas ao “intelectualismo acadêmico”, de Debord ao sexo explícito da Boca), num grande caldo de raiva e desejo, insatisfação e maravilhamento. Essa era a forma política possível de uma geração mostrar a sua cara, uma forma política diferente dos debates da “identidade cultural de um país” lá dos anos sessenta, mas, no início deste novo século, parecia ser a forma possível de falar do mundo. Um olhar precário, confuso, difuso, entediado, mas de alguma forma era um olhar que mostrava uma pulsão diante das novas possibilidades de encontro que o audiovisual vinha possibilitando.

Foi nesse contexto que surgiu a Mostra do Filme Livre, no Centro Cultural Banco do Brasil, em janeiro de 2002. Foi a primeira mostra de audiovisual, com funcionamento e estrutura regulares, que deu espaço a essa produção radicalmente independente, exibindo, na mesma sessão, filmes de diferentes bitolas, coisa que hoje é mais do que fato consumado, mas que lá em 2002 eram só os visionários “doidinhos” da MFL que precisavam convencer os projecionistas que era preciso ligar e desligar os diversos projetores da casa numa mesma sessão…

Desse modo, a Mostra do Filme Livre ofereceu um espaço para as novas obras audiovisuais que eram produzidas nesse novo contexto e que não conseguiam abrigo nos festivais de cinema do país, ainda voltados para uma outra lógica de circulação, os “grandes e importantes curtas com uma estrutura de produção”. Esses festivais, com uma lógica mais tradicional, carregaram consigo o longínquo fardo da necessidade de corroboração de um processo de “retomada do cinema brasileiro” que, mesmo com todas as iniciativas governamentais, centradas nas leis de incentivo, continuava patinando na necessidade de ocupação de um mercado dominado pelo produto hegemônico estrangeiro. Por isso, caíam na doce ilusão de tentar mostrar que o cinema nacional era “forte” e “bem feito”.

Mas havia um outro cinema que acrevitava na precariedade como potência e via no processo, e não necessariamente no produto final, um dos pontos-chave de uma nova forma de produção, menos hierarquizada e mais flexível, dialogando com o documentário e com a videoarte, que via uma relação de cumplicidade entre o cinema e o mundo, entre a criação e a vida. Ao longo desses dez anos, essa geração “tomou corpo”, fortaleceu-se, diversificou seu processo criativo, amadureceu, de modo que hoje é possível afirmar que constitui uma nova cena, ou ainda, uma nova geração. Dos primeiros curtas-metragens em vídeo, foi crescendo a certeza de que também era possível fazer longas-metragens com o mesmo espírito criativo, com o mesmo modo de produção. O tabu do “primeiro longa” foi reduzido: nos últimos anos, um conjunto de longas-metragens foi produzido ou sem nenhuma grana estatal ou com orçamentos menores que R$200 mil. Entre eles podemos citar: Estrada Para Ythaca (Guto Parente, Luiz e Ricardo Pretti, e Pedro Diógenes), A Fuga da Mulher Gorila (Felipe Bragança e Marina Meliande), Meu Nome é Dindi (Bruno Safadi), Sábado à Noite (Ivo Lopes Araújo), Pacific (Marcelo Pedroso), Acidente (Pablo Lobato e Cao Guimarães), Um Lugar ao Sol e Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro), A Casa de Sandro e Chantal Akerman, de Cá (Gustavo Beck), entre tantos outros, com grande repercussão crítica nacional e com participação em grandes festivais internacionais, como Locarno e Rotterdam.

Há dez anos, no entanto, pregava-se no deserto. Se hoje os nomes de Cao Guimarães, Helvécio Marins, Marcellvs L., Gustavo Beck, Irmãos Pretti, Ivo Lopes Araújo, Sérgio Borges, Bruno Safadi, Marco Dutra, Marília Rocha são nomes recorrentes, quem conhece curtas como Nanofania, Alma Nua, Dentro de Mim Mora um Anjo, Hera, Amador, Enquadros, Através, Na Idade da Imagem ou Projeção nas Cavernas, Notívago, Busílis, e tantos outros? Onde esses filmes foram exibidos? Certamente, na Mostra do Filme Livre, e diria, em muitos casos, apenas na Mostra do Filme Livre. Ou seja, a MFL, mais do que colher os frutos, sempre se procupou em plantar as sementes, abrindo portas para os primeiros filmes, valorizando os primeiros passos daqueles que vêm se dedicando a uma pesquisa de linguagem sobre a produção audiovisual contemporânea. Além desses nomes, que hoje conseguem um reconhecimento de seu trabalho, a MFL se orgulha também de exibir raros filmes que ainda não obtiveram seu devido e justo reconhecimento, como os longas de Dellani Lima (Sobre o Amor em Tempos Difíceis, O Sonho Segue Sua Boca), Ermo (Salomão Santana), Harmonia do Inferno (Gui Castor), os meus próprios longas caseiros (Em Casa, Desertum e Êxodo), além de tantos outros curtas e médias metragens, que ainda se mantêm à margem de um circuito oficial de legitimação, mas cujo trabalho vem sendo descoberto, ainda que bem mais lentamente.

Uma das características da Mostra do Filme Livre é rechear o catálogo de cada ano com textos e reflexões sobre seus múltiplos olhares. Nesta coletânea de textos, é possível ver que os olhares dos curadores da MFL não são homogêneos, mas apontam para várias tendências que são complementares, que não hesitam em esbarrar em tensões, paradoxos e conflitos. Pois a Mostra nunca procurou legitimar-se através da consolidação de um certo circuito, mas ampliar os olhares, em buscar fazer dialogar tendências díspares, heterogêneas: das retrospectivas de autores veteranos e mais jovens, dos filmes trash à videoarte, do pop irreverente às tenazes pesquisas de linguagem, ou, como gosto de dizer, do zen ao punk. A pluralidade de olhares da MFL tornou mais difícil o seu reconhecimento imediato por um certo circuito crítico mas garantiu sua independência exatamente por não se satisfazer em implantar modismos, mas abrir-se para olhares múltiplos, difusos, renovados. Ainda que não tenha o reconhecimento (e o orçamento) de tantas outras mostras de audiovisual no país, é inegável que a Mostra do Filme Livre contribuiu, ao longo desses dez anos, de forma significativa e contínua para a consolidação dessa cena de renovação do atual cinema brasileiro. Plantamos sonhos (como se isso fosse possível…) sem a necessidade de colhê-los. E temos um baita orgulho disso!!!! Vida longa à Mostra do Filme Livre!!!

Marcelo Ikeda.
 
 

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